domingo, novembro 30

We are such stuff as dreams are made on.


Somos da mesma substância que os sonhos, diz Shakespeare n'A Tempestade. Na peça, ele se pergunta o que é o homem, qual a diferença entre realidade e ilusão; deixa-nos com todas essas indagações, contudo saímos do teatro com algum conforto, seja inebriados com a certeza de que podemos ser tudo aquilo que nossos sonhos nos permitirem, ou mesmo aliviados pelo fato de nem Shakespeare saber respondê-las.
Seja como for, a experiência de assistir a Shakespeare com cenário moderno e personagens imaginários choca, num primeiro momento, que pode ter-me levado a criticar a escolha do diretor, que, no entanto, revelou-se acertada depois de uma noite no mundo etéreo, mesmo que tenhamos a impressão que os atores se perdem durante a transição "ao vivo" entre personagens... realidade ou ilusão, perdem-se realmente ou não?
Será que o fato de sermos da mesma substância que os sonhos nos torna etéreos? Acredito que sim ao passo que somos potencialidade, e temos planos de vir a ser. Como lidamos com essas potencialidades e planos cabe a cada um de nós, a nossa ética e afetos. Temos a desculpa de ser medíocres em diversos aspectos de nossa vida, mas é imperdoável que sejamos medíocres para conosco, que nos permitamos sonhar e desejar coisas pequenas.

Um provérbio chinês (que deve ser milenar, pois tudo que vem de lá é milenar...) diz que o medíocre discute pessoas, o comum discute fatos, e o sábio discute idéias.

Nossos sonhos devem transcender nossa própria existência, medíocre por natureza, pois limitada, e nos alçar aos patamares mais elevados. A diferença entre sonho e ilusão é mera definição dicionarística. A tempestade nos força a deixar o sono e acordar para a realidade, que, talvez por não ser tão bonita quanto gostaríamos, é denegada. O senhor da vida somos nós mesmos... ou você está aí sentado esperando que o Diretor venha lhe dizer o que fazer? Acorde!

terça-feira, outubro 21

Império dos sonhos

Assisti ao Império dos Sonhos (Inland Empire) do Lynch: basicamente uma releitura do Cidade dos Sonhos (Mulholland Dr.), mas muito menos inteligível. Novamente ele fala do filme dentro do filme, dos sonhos que povoam nossas vidas e de como vivemos imersos no universo caótico de nossos pensamentos. Diversas são as vozes que, por vezes, acabam nos enlouquecendo. Como no filme, o diálogo com o psiquiatra silencioso tem serventia. Em vista disso, não escrevo faz um bom tempo, desde que comecei a recorrer ao diálogo interno para entender como sonhos e fantasias marcam presença no mundo real.
Papo de louco, diriam. E de certo modo é...
- Então, Dra., o que me diz do meu sonho?
- Como?
- Do sonho, que eu acabei de contar...
- Mas foi um sonho? Você não assistiu mesmo ao filme?
- Sim, assisti.
- Então por que está me perguntando de sonho? Não entendi...
- Como assim, não entendeu? Acabei de te contar meu sonho.
- Mas você não disse que era real?
- E sonhos não são reais? Você mesmo diz que Freud...
- Peraí, como assim Freud? Você está confundindo tudo, eu não disse nada... nem ele!
- Olha, Dra., eu te pago uma fortuna por sessão pra ouvir que não tem nada a ver Freud com meu sonho, com o Lynch, nem com a ponte estaiada?
- Mas eu não falei nada!
- Exatamente, como assim você não fala nada? Tá muda? O que você tanto fica rabiscando enquanto eu to falando?
- Nada não.
- Mas, voltando ao Lynch, acho doida a cena do diálogo com o psiquiatra silencioso.
- E como você se sente em relação a essa cena?
- Adivinha...

quarta-feira, julho 23

A insustentável leveza de ser Atlas

A mitologia grega nos informa que Atlas foi um titã incumbido de sustentar o mundo. A lenda diz que Hércules tinha de apanhar algumas maçãs de ouro no jardim das Hespérides, mas sabia que Atlas era o único capaz de fazê-lo, então propôs a ele que fizesse o trabalho enquanto sustentava o firmamento. Atlas retorna e, tentando enganar Hércules, diz que ele mesmo iria entregar as maçãs. Hércules era bem espertinho e, para não cair nessa, diz que precisava de sua ajuda para ajeitar o céu em suas costas. Atlas sustenta os céus por um instante, mas Hércules vai embora com as maçãs, deixando-o no eterno suplício.
Pensando em termos atuais, não estamos tão longe de ser Atlas em nosso cotidiano... carregamos o mundo nas costas, metaforicamente, quando não temos mais tempo para as coisas prazerosas da vida, como dormir, comer uma refeição em paz, contemplar o céu, as árvores, sentir o solzinho batendo no rosto num dia frio, ou mesmo quando temos a impressão de que nossos dias estão cada vez mais curtos.

Sobre a dicotomia leveza-peso é que Kundera monta sua narrativa em A insustentável leveza do ser. O autor toma uma perspectiva existencialista, em que a leveza é entendida como a vida descomprometida, e o peso como o comprometimento. Acredito que a leveza, a frivolidade, a superficialidade com a qual nos relacionamos com o mundo e com as pessoas destitui nossas vidas de sentido. O contrário é verdadeiiro também: nosso comprometimento com o mundo e com os afetos nos dá os motivos para viver.

Então, por que temos tanto medo de viver? Se o peso do mundo já está em nossas costas, por que não dividi-lo com mais alguém, com amigos, amores, sentidos de vida... Atlas sofre, mas tem sentido pelo qual sofrer; o peso de sua existência é o peso que seus ombros podem aguentar.

sábado, julho 5

Tempus edax rerum...

Ovídio, nas Metamorfoses, disse que tempus edax rerum est. O tempo é o devorador das coisas. Mas o que dizer de uma fotografia?

Há algumas semanas visitei o Museu da Língua Portuguesa e assisti novamente ao show no terceiro andar. Para quem ainda não conhece, trata-se de uma apresentação de poemas musicados com a projeção de imagens nas paredes e teto da instalação. Um poema que sempre me chama a atenção é um diálogo de Emília com o Visconde, cujo final, em especial, me fascina:

"...a vida, Senhor Visconde, é um pisca-pisca. / A gente nasce, isto é, começa a piscar. / Quem pára de piscar, chegou ao fim, morreu. / Piscar é abrir e fechar os olhos – viver é isso. / É um dorme-e-acorda, dorme-e-acorda, até que dorme e não acorda mais. / A vida das gentes neste mundo, senhor sabugo, é isso. / Um rosário de piscadas. / Cada pisco é um dia. / pisca e mama; / pisca e anda; / pisca e brinca; / pisca e estuda; / pisca e ama; / pisca e cria filhos; / pisca e geme os reumatismos; / por fim, pisca pela última vez e morre. / – E depois que morre – perguntou o Visconde. / – Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?"

(Monteiro Lobato em Memórias de Emília de 1936)



segunda-feira, junho 30

Qual o valor de um sorriso?

sexta-feira, junho 20

Às aves que migram...

Quando criança, me indagava acerca das coisas do mundo, perguntas ingênuas, mas que mostravam a avidez por conhecer, saber, entender. Perguntas provavelmente comuns a todas as crianças: "será que na minha vida toda ganharei/gastarei R$ 1 milhão?", "por que o céu é azul?", "pra que estudar português?", etc. À época, pensava que os adultos, sim, é que eram felizes, imaginava que eles nunca se indagavam sobre essas coisas, ou coisa qualquer, pois deviam tudo saber.
Curiosamente, eu tinha fixação pela idade de 25 anos. Não sei explicar (eis uma pergunta que nunca me fiz, tampouco!). Imaginava essa ser a idade perfeita, para alguma coisa que não sabia. Poderia dizer aqui que algo fantástico aconteceu, alguma epifania, uma revelação depois de março de 2007, quando fiz 25 anos - sinto desapontá-los -, mas nada disso aconteceu... Acredito que somos uma pessoa diferente a cada dia, mas no fundo ainda sou aquela criança perguntadora, lá de fins da década de 80.

Vasculhando meus arquivos no computador, encontrei um poema do Bryant (cujo poema Thanatopsis, escrito aos 17 anos, é considerado uma obra-prima da literatura estadunidense), do qual gosto muito, e que tive o prazer de traduzir anos atrás e reproduzo abaixo (o original, em inglês, pode ser visto aqui).

Àquela que migra
de William Cullen Bryant

Para onde, em meio ao orvalho,
Enquanto reluzem os céus com os últimos raios de dia,
Longe, através da tonalidade rósea, tu segues
Teu caminho solitário?

Em vão os olhos do caçador
Poderiam mirar teu vôo distante para fazer-te mal,
Enquanto, sombriamente vista contra o enrubescido céu,
Tua figura parece vagar.

Procurastes a margem pantanosa
Do delgado lago, ou a do amplo rio,
Ou onde as ondas agitadas sobem e descem
Na puída orla do mar?

Há uma Força cujo esmero
Ensina teu caminho ao longo da costa sem trilhas –
O deserto e infinito ar –
Solitário errante, mas não perdido

O dia todo tuas asas bateram,
Nas alturas, na fria e tênue atmosfera,
Mesmo não pousando, exausta, na terra que a receberá
Embora a noite escura esteja perto.

E logo a labuta terminará;
Logo tu encontrarás um pouso estival, e repousará,
E soltará a voz entre tua parelha; o junco deverá curvar-se,
Logo, sobre teu ninho protegido.

Tu terás ido, o abismo impenetrável
Terá absorvido tua forma; ainda assim, em meu coração,
Profundamente terá sido fincada tua lição,
Que não deve tão cedo partir.

Ele que, de lugar a lugar,
Guia através do ilimitado céu teu vôo certeiro,
Pelo longo caminho que devo trilhar sozinho,
Há de guiar meus passos sem erro.


Bryant fala basicamente da vida e de como percorremos os caminhos que nos levam, inexoravelmente, a um fim. Não um fim qualquer, mas um fim que nos permite transcender, pois nossa lição fica. E como alcançar esse objetivo final (que também acaba sendo o projeto existencialista), sempre haverá obstáculos (um caçador) à frente... Nessa linha, pego-me constantemente pensando em duas forças: a moral e a ética. São duas coisas diferentes: a moral lida com a igualdade das minhas relações em relação às outras pessoas (não fazer a outrem aquilo que não quer que façam a você). Já a ética diz que eu devo ser responsável comigo mesmo, além de fiel aos meus desejos. Para mim, são duas forças conflitantes, uma impulsionando em direção à realização dos meus desejos e outra os refreando.

Não é fácil ser criança, nem adulto. Talvez a grande transformação dos 25 anos seja exatamente essa: estar nel mezzo del camin di nostra vita (no meio do caminho de nossa vida), como Dante colocou, seguido por Olavo Bilac:

(...) Tinhas a alma de sonhos povoada,
E alma de sonhos povoada eu tinha...

E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.

(...)

E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.


A sensação é bem essa retratada pelo poema do Bilac; parece que os 25 anos marcaram o estar no meio do caminho entre o ontem e o amanhã, sem ser o hoje...

terça-feira, junho 10

Quem sou?

O texto da Dulce (Condutas de risco) me fez pensar um pouco sobre a questão dos simulacros e das simulações, como apresentada por Jean Baudrillard. Os simulacros visam enganar, fazer com que o falso se passe por verdadeiro. As simulações, contudo, não têm o intuito de ser representações falsas nem verdadeiras, mas apenas reproduzir o real.

Focando não necessariamente no texto dela, mas da idéia que pode ser extraída dele, talvez seja possível entender a atuação de Clayton como um jogo de simulações e de simulacros. Sua atuação profissional usa dos simulacros para atingir um fim: ganhar casos judiciais, ludibriar, etc. Quanto aos simulacros, sabemos ser possível tomar o falso pelo verdadeiro e vice-versa; no entanto, a simulação, por não pretender-se nem verdadeira nem falsa, nos deixa num estado constante de incerteza.

Partindo dessa idéia, podemos ver a pergunta "então, quem é você?" como a incerteza sobre a própria existência do protagonista. Afinal, ele é um indivíduo com seus princípios, certezas, medos, paixões, etc., ou uma simulação de alguém que acredita ser? Somos, nós, simulações das pessoas que imaginamos ser?

Diferentemente do filme, nossas vidas (agora insistindo numa definição existencialista) não são predeterminadas, nem sabemos de antemão quem somos, a existência precede a essência. Somos frutos de nossas experiências, ou condutas, se preferir. Acredito que, em certa medida, todos seguimos mais ou menos os passos da jornada do herói, sempre nos aproximamos da caverna oculta, mas nunca chegamos a adentrá-la... talvez nossa jornada seja, na verdade, a combinação de pequenas viagens, que no fim podem ser postas todas num livro, para que algum dia alguém possa indagar: "então, quem é você?". Não estaremos mais aqui para responder, mas só então teremos a resposta. Um contra-senso, aparentemente.

domingo, junho 8

E vale a pena?

Portuguese Sea - by Fernando Pessoa

Oh salt-laden sea, how much of your salt
are tears of Portugal!
So that we crossed you, how many mothers wept,
how many children vainly prayed!
How many brides still to marry
so that you would be ours, oh sea!

Was it worth it? Everything is worth it
when the soul is not skimpy.
Who wants to go beyond the Bojador
must surpass the pain.
God the sea perils and the abyss gave,
but in it He reflected the Heavens.

(Tradução minha)

Mar português

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

quarta-feira, junho 4

Quanto vale uma imagem?


(Foto minha, jan/2008 - Paranapiacaba, SP)

quarta-feira, maio 28

My Blueberry Nights - Beijo Roubado


Vi o filme. Acho que o que agrada nele é a fácil identificação com situações que já vivemos, principalmente a questão dos relacionamentos findos, e o medo de assumir novos, ou então investir na imagem da pessoa amada perdida, e sofrer, acreditando que isso nos torna mais nobres, de algum modo.
Certo está Jeremy (Jude Law) - podemos dizer -, que guarda a sete chaves as histórias e angústias, que é capaz de deixar seu grande amor ir e permanecer no mesmo lugar, esperando... até o momento em que decide roubar um beijo, que sequer é sabido pela beijada - qual o sentido disso?
Acho que se eu me atrever um pouco, posso extrapolar a idéia e dizer que é um filme dentro de um filme. As fitas que Jeremy grava, e depois assiste como se fossem ficção, para mim, indicam a postura que ele toma, e que todos no filme, de certo modo, tomam. Ninguém participa de nada, a vida acontece, e só.
Elizabeth (Norah Jones) assiste seu ex-amado com outra, pela janela do quarto, e assiste, sem se envolver, as pessoas ao seu redor; Jeremy assiste as fitas, e assiste todos que passam por sua vida - não tem coragem de ir atrás do amor, fica estagnado, esperando - chega a ser irritante!
Arnie (o policial alcoólatra) bebe a vida em uma garrafa - idiota! -, enquanto sua ex-mulher assiste, de camarote e com decote provocativo, sua morte, lentamente. Leslie (Natalie Portman), com sua arrogância loira, vê a vida de seu pai se esvair, e tem raiva, descabida, mimada.
O filme todo parece um sonho, talvez daí o título, My Blueberry Nights: a noite azul, a noite melancólica, do narcisismo que nos paralisa. Eu, que não tinha gostado/entendido o porquê das cenas lentas despropositadas, agora talvez entenda: não é tudo um sonho? ou um pesadelo? a vida... nem vou comentar sobre ninguém pedir torta de blueberry, senão vou ficar bravo :OP

sábado, maio 24

Mentiras que a gente compra

Calma, não se trata de nenhuma verdade à la Michael Moore. Mas bem que poderia. O site alemão Pundo (confira as outras fotos no site) traz uma série de fotos de produtos, como os que diariamente compramos aqui no Brasil, cuja embalagem promete o manjar dos deuses, mas na hora C (sim, não errei não, é hora C mesmo, de Comer!) nos deparamos com algo medonho. Fica a lição para aqueles que acham que Photoshop é usado somente em revista de mulher nua e afins (lembram-se do caso do umbigo apagado da barriga da modelo? Confira aqui).

domingo, maio 18

O que O Estrangeiro tem a ver com Arquitetura?

Finalmente, após meses, consegui terminar a leitura d'O Estrangeiro, do Camus. Esperava mais do livro. Não que seja ruim, pelo contrário, a idéia toda é ótima, mas a narrativa, seca demais, acaba minando aquela vontade de virar a página, para ver o que acontece em seguida.
O livro fala, em linhas gerais, do estranhamento, de sentir-se um estrangeiro no mundo, ... enfim, não encontrei inspiração para continuar este texto, então, vou falar de outro livro, muito interessante, que li no fim do ano passado: A Arquitetura da Felicidade, do filósofo suíço Alain de Botton.
Nele, Botton discorre sobre a influência da arquitetura em nossas vidas, bem como a noção do que é um edifício bonito. Afirma que a beleza das construções e dos objetos ao nosso redor possui a incrível habilidade de influenciar se somos felizes ou infelizes, e que a noção de beleza depende do que nos falta ou daquilo a que almejamos.
Faz sentido. Para ele, a periferia de Paris é um exemplo de arquitetura impedindo que os moradores desenvolvam suas faculdade plenamente: o projeto estéril, com linhas retas e modernas, não permitiria a criação de vínculos que recuperem o sentimento de afetividade proporcionado pela cidade natal dos moradores, subjugando-os, então, ao ambiente menos orgânico e artificial.
Analisando as construções pelo mundo, o autor percebe uma relação aparente entre como a população de um dado país se percebe/deseja ser percebido ou o que almejar ser e o estilo arquitetônico adotado.
Pessoalmente eu gosto de prédios com características orgânicas, com movimento, e ao mesmo tempo me encanto pelos que exibem linhas retas e exatas, concreto aparente com vidro. Olhando pelo prisma de Botton, talvez isso indique eu eu busco ordem e ao mesmo tempo uma saída de emergência dessa ordem em alguns momentos. A arquitetura contemporânea parece ilustrar bem o que me atrai, como a construção finlandesa acima: simples e sofisticada.
Olhando para São Paulo, notamos a falta de construções que podem ser objeto de contemplação. Vemos somente um monte de concreto em cima de concreto, mas nada digno de ser olhado com olhos de descoberta. Nos sentimos deslocados, estranhos, sem rumo e sem um lar. Apenas moramos aqui, não temos um lar, porque nos foi negado o vínculo. Bem, talvez eu tenha encontrado o que O Estrangeiro tem a ver com a Arquitetura..., do Botton, somos estrangeiros sem lar em São Paulo. É o que parece... é o que fica...

quinta-feira, maio 15

Distribuição de renda

Deu na Folha da S. Paulo (on-line) de 15/5: no Brasil os 10% mais ricos da população concentram 75% da riqueza. Não é de se espantar, afinal, seguimos nossa trajetória histórica de desigualdade na distribuição de renda. O estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), no qual a reportagem da Folha de baseia, ainda indica que a cidade de São Paulo desponta como a mais desigual, seguida de Salvador e Rio de Janeiro. Há quem diga que parte da culpa se deve à injustiça tributária, em que os ricos pagam pouco imposto quando comparados aos pobres.

O coeficiente de Gini, que mede a desigualdade na distribuição de renda/riqueza, aponta o Brasil como um dos mais desiguais historicamente, na frente de países como Suazilândia, Zimbábue, Moçambique, Ruanda (vale lembrar que o coeficiente não leva em conta o tamanho do país) - os países escandinavos e o Japão figuram entre os com melhor distribuição (lembre-se do tamanho desses países).

O mapa mostra o coeficiente Gini no mundo (o amarelo representa países com distribuição mais igualitária, e o rosa os mais desiguais).

O gráfico apresenta a distribuição histórica de renda de alguns países selecionados (os dados foram coletados de informações publicadas pelo Banco Mundial).

De qualquer modo, o Brasil está entre os melhores no Índice de Desenvolvimento Humano (ocupa a 70ª posição, o que não é ruim, mas Cuba está na 51ª!).

No país em que lojas de luxo são vizinhas de favelas e pontes monumentais tentam maquiar o fedor do rio, a gente pode esperar de tudo. Até mesmo fonte pra cachorro beber água em shopping center, enquanto crianças morrem de fome nos faróis.

Fonte: mapa - United Nations Human Development Report 2007-2008 - http://hdr.undp.org/en/]

terça-feira, maio 13

A prosopopéia do mercado

Foi-se o tempo em que somente na Literatura havia seres inanimados ou animais agindo como pessoas, expressando sentimentos humanos e fazendo coisas de gente. Se outrora eram os dias que podiam estar tristes, a rosa que acordava despenteada, a raposa que dava lição sobre o valor da amizade - exemplos abundam -, nas últimas décadas são os Estados Unidos que dizem preferir resolver a questão com o Irã diplomaticamente, o navegador da internet que adora travar, a Bovespa que está confiante, ou o mercado que exige que as modelos sejam magras. Este último, em especial, parece ter se tornando um ser vivo, pensante, que tem a primazia das nossas vidas. É curioso que uma "coisa" criada por nós mesmos acabe ditando nosso comportamento. Nada mais perverso, acredito.

Ouvimos diariamente que o mercado exige profissionais altamente qualificados, que o mercado é implacável, que as modelos que o mercado quer devem ser magras... Ora, partindo da noção de que o mercado não existe como um ser autônomo, pensante, que respira, come, etc., como é que ele pode exigir coisa alguma? O perverso da história toda é que somos nós os criadores dessa personagem, atrás da qual se escondem os caracteres desviantes e que a utilizam para manipular. O mais inquietante, contudo, é que parece termos nos esquecido de que "mercado" nunca foi nem nunca será um ser vivo. Fomos, então, acometidos por uma psicopatia e não conseguimos mais enxergar a realidade? Talvez postos novamente na caverna e realmente acreditamos naquilo que nos contam? Que criamos doenças que antes não existiam - fobias, depressão, transtornos alimentares, hiperatividade, TOCs, estresse -, não é novidade, mas se nunca pensamos em enquadrar essa histeria coletiva chamada "mercado" nas "doenças modernas", devíamos agora! As qualidades do Sr. Mercado se enquadram bem na definição de psicopata: ele é perverso e, apesar de se manter a par da realidade, é desprovido de superego - comete atos criminosos sem sentir culpa!

Em última análise, acredito que criamos um mercado que toma as decisões por nós, pela mesma razão que criamos um Deus-todo-poderoso que determina nossa sorte: não queremos ser responsáveis pelos nossos atos. Logo, nada mais cômodo que criar um velhinho-que-sempre-existiu, ou um "ser-mercado", para justificar nossas frustrações, nossas felicidades, nossa (des)motivação... Nossa necessidade de regras é patente, haja vista os diversos códigos - jurídicos, de conduta, de etiqueta, de "bem falar", de "bem vestir", etc. -, que criamos para frear nossos impulsos de destruição. Sartre escreveu que "quando muitos homens estão juntos, é preciso separá-los pelos ritos, senão matam-se uns aos outros
", ou seja, somos ao mesmo tempo seres gregários e nos detestamos, e "um homem não pode ser mais homem do que os outros, porque a liberdade é igualmente infinita em todos". Vai entender...

domingo, maio 11

O que acreditamos

Navegando na Internet, encontrei este quadrinho interessante sobre o processo de criação de significado. Acredito que nossa interação com o mundo, em boa parte, se dê por meio da linguagem, mais especificamente pela função nomeadora com a qual nos equipa. Nomeando damos vida às "coisas" que, de outro modo, permaneceriam no limbo dos nossos pensamentos.
Dulce, uma grande amiga e escritora-em-formação - exímia tradutora, vale ressaltar -, vive às voltas com problemas tradutórios (cf. O Inferno de Dulce), além de já ter expressado a dificuldade de se botar no papel o pensamento mais simples, às vezes.
Como mostrado no quadrinho, o enunciador 1 tem uma imagem completa do cachorro, e o enunciador 2 precisa que este lhe dê mais dados para compreendê-la. No entanto, o que se desenvolve é que o enunciador 1, apesar de ter sempre o mesmo cão em mente, atribui valores diversos cada vez que vai falar dele. A imagem mental que o enunciador 2 tem, por sua vez, muda a cada nova informação, e ele, no final do diálogo, chega à imagem de um cão diferente, restando ao enunciador 1 indagar-se por que é que ninguém o entende.
Eu poderia ensaiar diversas explicações porque isso acontece, mas quero me ater a um aspecto: talvez seja exatamente essa habilidade de descrever imagens de modo simples e ao mesmo tempo completo que distingue um escritor interessante do mais enfadonho. Então, a facilidade com que o texto nos aprisiona estaria ligada diretamente à fidelidade da imagem que está no limbo das idéias, que o escritor, com a maestria que o ofício lhe proporciona, põe no papel, para deleite do leitor.
É isso...


Imagem: http://www.webbschool.com/rhood/english2/toolbox_2005_06.htm